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FELÍCIA

  • Foto do escritor: André Cordeiro
    André Cordeiro
  • 15 de mai. de 2021
  • 7 min de leitura

Atualizado: 26 de jun. de 2022



Publicado originalmente na edição 16 da Revista Ponto, da editora SESI-SP

(junho de 2014)




— Foi uma mulher.


O inspetor olha pra mim com repulsa. Nessa altura ele deve me achar um maníaco ou algo do tipo, mas estou de saco cheio daquilo tudo pra me importar com o que ele pensa.


— Não um homem. Uma mulher. — reforço.


— Do que você tá falando, Ricardo?!


— Você acabou de falar que foi um homem. Mas foi uma mulher. — começo a me arrepender de ter corrigido o Vargas.


— Você esperou pra falar isso agora? Não sei se você percebeu, mas já terminamos aqui.


Abaixo a cabeça olhando para o carpete encharcado de sangue. O morto me olha de volta, inexpressivo. Decúbito dorsal. Um crime simples. Rompimento da artéria aorta com emprego de arma branca. Hemorragia externa.


A vítima deve ter sofrido. Ela sabe o que faz. Provavelmente o dopou (álcool?). Ele não conseguiu reagir. Por quanto tempo ela o deixou sangrar?


— Temos testemunhas oculares, Ricardo. — diz Vargas. — O vizinho da frente comprova que viu um homem entrar no apartamento.


— A luz do corredor não está funcionando. A gente viu isso vindo pra cá. Ele pode facilmente ter se confundido com o próprio morador do apartamento.


— Puta que o... — ele não completa. — Você tá sugerindo que o vizinho não conhecia quem morava aqui?!


— Ele mesmo falou que a vítima era morador novo. Não acho que ele teve tempo de conhecê-lo bem. Além disso, com a luz do corredor não funcionando, não dá pra afirmar que ele seria capaz de distinguir o assassino do próprio morador. Sem falar que ele viu tudo pelo olho-mágico.


— Quer saber de uma coisa? — Vargas pousa uma de suas mãos no meu ombro. — São dez da noite de sexta. Eu estou cansado pra caralho. — suas mãos apertam mais forte. — A última coisa que eu quero é perder meu tempo discutindo o gênero do assassino. Temos uma testemunha. Se ele disse que era um homem, era um homem.


Ele anda até a porta do apartamento e antes de sair grita para o perito:


— E Umberto! Pode pôr no laudo que o nosso suspeito é um homem! Vou pra casa e sugiro que todo mundo faça o mesmo.


Ouço os passos de Vargas ecoando pelo corredor, até sumirem. Fico sozinho na cena do crime, de novo.


Tem algo errado aqui, algo extremamente errado. Vargas não me dá ouvidos, acha tudo uma grande bobagem. Mas eu tenho certeza. Chamo o perito pra perto, ele responde antipático:


— O que foi, Ricardo? Já vamos levar o corpo para autópsia.


— Antes que você faça isso me responda uma coisa. — ajoelho do lado morto. — Você notou alguma coisa diferente nos lábios da vítima?


— Não vejo nada.


— Notou a coloração vermelha?


— Na verdade... — ele para por um segundo. — Não...


Pego um lenço de papel e passo a ponta de forma branda no canto do lábio do morto. O lenço volta manchado de vermelho.


— Sabe o que é isso? — eu pergunto, ele não responde. — É batom. Coloque isso no seu laudo.


— Como você...


— É o terceiro assassinato seguido que acontece com o mesmo padrão. Morte por hemorragia externa, ataque com arma branca e sinais de batom no lábio da vítima. Foi uma mulher.


Umberto é um idiota. Não importa o quanto eu tente explicar, a última palavra é sempre a do Vargas. Mostrar ou não as evidências parece inútil. Ele vê tudo o que mostro, ainda assim ele não fica convencido.


— Você tem mais alguma coisa além disso? — ele pergunta.


— Não. Isso é tudo.


— Então sinto muito, Ricardo. Essas conexões com os outros crimes são totalmente subjetivas. E como o Vargas disse, o vizinho alega que viu um homem entrar no apartamento na hora do crime. Se você quiser provar que é uma mulher, consiga evidências mais concretas.


— É o meu instinto.


— Foi o que eu disse... sinto muito.


Eles colocam o corpo da vítima num invólucro de plástico e fecham o zíper. Eu sou o último a sair do quarto. Passo por baixo da faixa de polícia. O caminho do corredor até as escadas parece mais longo. E vazio.


Chego na rua e fumo um cigarro. Rápido demais. Então fumo outro. Chove e eu não tenho no que me proteger.


Sigo a pé até o hotel. Estadia provisória para o meu apartamento que foi alvo de um incêndio. A chuva não cessa. Penso em subir até o meu quarto. Tentar dormir. Mas não estou com sono. Ou cansado. Minha cabeça não para, preciso de uma bebida.

O bar do hotel: vazio. Apenas o barman. Peço um uísque. Esvazio o copo. Ele enche de novo. Tiro um cigarro do bolso. Não é permitido. Uma nota de cinquenta o ajuda a repensar. Então fumo.


Fumo e deixo a fumaça pairar sobre o balcão. Pergunto se ele quer fumar também. Ele não sorri. Cidade pequena, gente pequena.

O bar só é iluminado por lâmpadas amarelas do balcão. Meu reflexo me encara pelo espelho. O barman fala que está fechando o bar. Eu peço só mais um copo de uísque. Ele deixa.


Me sinto sozinho. O cigarro já está acabando. Deveria estar na cama, dormindo. O barman vai para a cozinha. Eu me sinto ainda mais sozinho.


Então alguém entra no bar. Eu não olho. Mas sinto um cheiro de rosas. Até que ela fala:


— Está livre?


É uma mulher. Ela deixa os cabelos cobrirem parte da orelha esquerda, do outro lado ela os deixa para trás. Loira. Vestido preto curto que me deixa ver o suficiente.


— Não. Pode sentar.


— Esperando alguém? — ela ajeita a bolsa e o vestido enquanto senta.


— Também não.


— Então você não é daqui.


— Na verdade sou. Deu um problema no meu apartamento e estou aqui até arrumarem.


— Que droga. — ela diz. — Estou aqui de passagem.


— Negócios?


— Sim. Sou jornalista.


— Não tem muito o que ver nessa cidade. — eu puxo um cigarro. — Quer um?


— Eu não fumo.


— Eu também não. — acendo o cigarro.


— Você não gosta muita daqui, não é?


— Cidade pequena, gente pequena.


— Não acho. Gente pequena existe em qualquer lugar.


— É... pode ser. — trago profundamente.


— Você não parece muito convencido.


— Porque ainda acredito no que eu disse. Sou de São Paulo.


— Ah, tá explicado então.


— O você quer dizer com isso?


— Todo mundo que vem de São Paulo se acha melhor. — ela diz. — Eu também sou de lá. Não aguento mais aquela cidade.


— Se você não gosta de uma cidade é só se mudar.


— Olha só quem fala.


— Eu não posso. Trabalho aqui.


— Muda de emprego.


— Como se fosse fácil. — meu cigarro está pela metade.


— Não querem mais policiais em São Paulo? — ela sorri.


— Como você...


— Dá pra ver a arma no seu coldre. — ela aponta enquanto tento ajeitar o paletó.


— Não sou policial. Sou detetive.


— Grande diferença.


— Um policial atira antes de pensar. Eu tento só pensar.


— Bom, então você deve estar investigando os assassinatos que estão acontecendo aqui. — ela puxa um bloco de notas e uma caneta.


— Isso é uma entrevista?


— Mais ou menos.


— Por que você não para de trabalhar um minuto e me acompanha no cigarro?


— Não fumo, já disse. Vocês tem alguma ideia do porquê desses assassinatos? Tem alguma relação?


— Então essa é a matéria que você veio buscar.


— Cidade pequena... — ela deixa um sorriso lateral.


— Eu não falo de uma investigação em andamento.


— Tudo bem. Mas você precisa entender que não consigo achar ninguém que me dê uma informação útil desse caso. Eu tenho que voltar amanhã para São Paulo e não tenho nenhuma notícia.


— Ninguém aqui fala sobre isso porque ninguém acha que existe um padrão entre esses crimes.


— E você? — ela pergunta.


— Eu não entendo. O que você vê demais nesses crimes? Pessoas morrem todo dia. Você deveria ter ficado em São Paulo.


— Meu palpite é que tivesse uma história aqui. Foi o que eu disse para minha editora. Eu preciso de alguma informação.


— Boa sorte. — o cigarro termina. — Você sempre se veste assim para trabalhar?


Ela se levanta irritada:


— Obrigada pela ajuda, babaca.


Eu posso deixá-la ir. Depois voltar para o meu quarto e fechar os olhos. Mas preciso de alguém comigo. Não aguento mais uma noite do jeito que estou:


— Espere. — eu levanto também — Eu posso falar sobre o que acho do caso. Mas não quer dizer nada.


Ela se vira. Eu consigo ver seus olhos azuis:


— Qual o seu nome?


— Ricardo.


— Prazer, Felícia. — ela me cumprimenta como se nunca tivesse me conhecido. — Sou repórter e quero fazer algumas perguntas pra você, se importa?


— Pode falar. — eu sorrio e decido entrar na dela.


— Você é um detetive?


— Correto.


— Quanto tempo?


— Nessa cidade, quase cinco anos.


— Você está investigando os assassinatos que estão acontecendo?


— Estou.


— E você acha que eles tem algo em comum?


— Talvez.


— Sim ou não? — ela diz.


— Sim.


— Por quê?


— Porque os assassinatos seguem um mesmo padrão. Vítimas costumam ser homens entre 35 e 40 anos. Sempre falecem por hemorragia externa, oriunda de um corte transversal no torso que atinge a artéria aorta. O agente utiliza-se de uma arma branca.


— Que tipo de arma branca?


— Uma faca de médio porte. Pelos níveis dos cortes eu diria talvez uma faca para limpar peixe.


— E esses crimes você acha que são feitos por uma pessoa só?


— Sim.


— Já tem algum suspeito? — ela continua escrevendo no bloco de notas.


— Sim.


— Posso saber quem?


— Essa parte eu não posso falar, Felícia. Mas o resto, pode publicar.


Ela para por um segundo, pensativa.


— Tudo bem. Me vê um cigarro.


— Você fuma agora? — eu rio.


— Sim.


Eu passo o maço. Ela coloca um cigarro na boca. Eu acendo com o meu isqueiro. Felícia solta uma fumaça fina, ela sabe fumar.

— Satisfeito?


— Muito. Pensei que não fumava.


— Eu tento não fumar. — ela disse. — Fazia dois anos que eu tinha parado.


— Meus pêsames.


— Deveria. A culpa é sua. — ela ri.


— Foi bom você aparecer. Esse hotel é muito vazio. Ninguém viaja pra cá. Me sinto sozinho.


— Eu também me sinto. — ela olha pra baixo.


— Vi que você tem uma aliança.


— Ele faleceu. Faz tempo. As coisas mudam muito rápido.


— Eu sinto muito.


— Tudo bem. Já superei.


A luz ilumina Felícia de um jeito misterioso e ela me olha de um jeito misterioso. Eu me sinto mal por ela, de verdade. E apesar de não conhecê-la bem, queria ajudá-la.


Ela apaga o cigarro. Nós não falamos nada por um momento. A mão dela alcança a minha. Ela se inclina. Então ela me beija. Eu não recuo.


O batom vermelho fica marcado em meu lábio. Deixamos o bar e subimos para o meu quarto. Ela fala alguma coisa no meu ouvido. Eu não ouço.


A chuva resvala na janela.

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